“Vagabundo eu sou, ave sem ninho, pela vida eu vou, canto sozinho…” Foi sempre solitário, triste e discreto o canto de Valzinho Teixeira, compositor, letrista, violonista, permanente inovador e última das grandes perdas sofridas pela música popular brasileira.
Discretamente ele viveu: 65 anos de existência e 47 de carreira. Era daquele tipo de músico não muito conhecido do público, mas entusiasticamente respeitado, admirado e até imitado pelos outros músicos. Parecia fugir da fama, arredio, tímido, modesto ao exagero. Mas os que lhe conheciam a obra procuravam-no sempre, sem esconder um encantamento igual ao que levou Tom Jobim a concluir, depois de cantar Doce Veneno ao piano, que suas harmonias eram repletas de surpresas e sutilezas.
Discretamente ele morreu, sexta-feira passada, quando toda a cidade parecia preocupada com a chuva, ameaça maior à apresentação de Frank Sinatra no Maracanã (*). Valzinho foi sepultado num dia de Sol.
Sua biografia, como não podia deixar de ser, é cercada de alguns mistérios. Pouco se escreveu a seu respeito, raras entrevistas ele concedeu. Hermínio Bello de Carvalho – que dedicou ao homem e à obra grande parte do encarte do disco Valzinho: um Doce Veneno, lançado no ano passado – fala de um personagem misterioso, grande boêmio, homem de amores violentíssimos (“… inclusive com dois mitos da Rádio Nacional…”), introvertido, mão-aberta, alma pura e sofrida.
Nasceu no Irajá, a 26 de dezembro de 1914. Seu nome completo: Norival Carlos Teixeira. Por muitos anos a família viveu o clima musical de Vila Isabel, o irmão Newton Teixeira compondo obras-primas como A Deusa da Minha Rua, a irmã Yêdda sendo a grande estrela dos velhos show do Instituto de Educação. Valzinho descobriu o violão cedo. Depois do primeiro emprego (auxiliar de alfaiate, para ajudar a família), vamos encontrá-lo, aos 18 anos, integrando alguns regionais da época.
Até 1933, tocou com o conjunto de Pereira Filho, ao lado do violão de Luís Bittencourt, da flauta de Dante Santoro e do pandeiro de Darcy. Pereira Filho, também violonista, era líder e arranjador. A partir de 1934, intensa atividade: shows em rádios, teatros e circos, apresentações ao lado de Pixinguinha, Luperce Miranda e Carlos Lentini.
Já por volta de 1936, os primeiros ensaios como compositor. Nada parecido com o que fazia na época. Pelo contrário, era um pesquisador de harmonias – assim como Custódio Mesquita e Vadico – e, nisso, um lançador do que bem pode ser considerado o germe da bossa nova. Com a palavra, Radamés Gnatali, cujo conjunto acompanha Zezé Gonzaga no disco Valzinho: um Doce Veneno:
– “Era um bom músico, bom rapaz, bom amigo, Mas o introvertido compositor nunca foi devidamente conhecido. Escrevia coisas muito modernas para a época. Talvez por isto o povo não compreendesse a sua música. Foi um precursor da bossa nova” – e tinha como público outros músicos.
A primeira das composições de Valzinho a chamar a atenção de seus colegas de profissão foi, certamente Tudo foi Surpresa: “Era a minha vida um lindo céu azul, mas, depois que o nosso amor morreu, rolam grossas nuvens de saudade…”. A letra, de Peterpan, pouco tinha de novo, enquadrando-se no estilo um tanto rebuscado da época. Mas a linha melódica já revelavam a presença de um músico preocupado com novas formas.
O rádio foi seu principal campo de ação. Trabalhou na Mayrink Veiga, apresentando-se todos os domingos no Programa Casé. Onde a grande estrela era o compositor letrista e cantor e até contra-regra Noel Rosa. Noel morreu em 1937, Valzinho seguiu em frente. Em 1940, a Rádio Nacional, em cujo cast figuravam os maiores nomes da música popular. Doce Veneno é desta época. Não apenas Radamés, mas todos os músicos da emissora apreciavam, com sicero entusiasmo, as melodias de Valzinho. Dante Santoro, em cujo regional tocava, maestros como Lírio Panicalli, Leo Perachi e Chiquinho. As composições se sucederam: Três de Setembro, Óculos Escuros (com versos típicos de Orestes Barbosa, dizendo:”Mas eu vi pelo vidro enfumaçado, do outro lado, um cristal de uma lágrima rolar…”), Imagens (Orestes, de novo, comparando um beijo a um fósforo aceso), Amar e Sofrer (em que Valzinho se revela um ótimo poeta), Tormento, Castigo, Teu Olhar,Quando o Amor Vai Embora, Fantasia, Tempo de Criança, Viver Sem Ninguém e uma, supreendentemente moderna, Não Convém.
Todas estas composições, por longo tempo esquecidas, só voltaram a ficar ao alcance do público no disco gravado por Zezé Gonzaga e o Quinteto Radamés Gnatali. Foram, portanto, quase trinta anos entre a data de composição e a data da primeira gravação (**).
Homem sensível, Valzinho recebeu como rude golpe a morte do pai, em 1950. Começou então a aparecer ainda menos. Em 1973, quando a mãe morreu, guardou o violão “para sempre”. Um sempre que durou apenas seis anos, quando concordou em entrar no estúdio para gravar, com sua voz rouca e triste, a obra-prima que é Viver Sem Ninguém.
Compositores da outra geração saudaram seu retorno. Um deles, Élton Mederos:
-”Trata-se de um melodista de primeiro time. Injustiçado, porém, já que tanto ele como Garoto, ambos violonistas, foram os inovadores da música popular brasileira, bem antes da bossa nova.”.
Outro, Hemínio Bello de Carvalho:
-”Compositor maldito? Talvez ele, mais que nenhum outro, mereça esta rotulação. Que mistério foi este que tornou obscura a sua biografia e oculta a sua sombra. O que determinou o afastamento de Valzinho da composição? Um pouco de desambição, talvez a boêmia e as muitas desilusões de amor… Mas Valzinho é um destes artistas raros… Sua obra não conseguiu submergir à solidão que ele impôs a como roteiro de seus dias.”
O solitário, triste e discreto Valzinho, que em um de seus versos diz, do amor e da vida: “Tudo acaba… é a lei da natureza”.
(João Máximo – Jornal do Brasil, contra-capa do Caderno B, página 10, Rio de Janeiro, terça-feira, 29 de janeiro de 1980)
Notas minhas:
(*) Que aconteceu no dia 26 de janeiro de 1980, um dia depois da morte de Valzinho, que sempre fora seu fã.
(**) Aqui há uma imprecisão do jornalista já que algumas destas composições foram gravadas desde que foram criadas, portanto dentro dos trinta anos citados, por Elizeth Cardoso, Paulinho da Viola, Jamelão, Jards Macalé e Maria Creusa.